quarta-feira, 15 de junho de 2011

PSICANÁLISE E ATO ANTI-SOCIAL. (Considerações sobre o atendimento a adolescentes em conflito com a Lei).

PSICANÁLISE E ATO ANTI-SOCIAL. (Considerações sobre o atendimento a adolescentes em conflito com a Lei).

* Zeno Germano

Resumo: Este artigo busca expor a compreensão psicanalítica dos atos anti-sociais de adolescentes a partir da experiência de escuta no atendimento em medidas socioeducativas de privação de liberdade no Estado de Rondônia. Há uma reflexão sobre os termos transtorno de conduta e psicopatia em relação á adolescência, perversão como uma característica da sociedade atual e sobre a importância de uma escuta ampla sobre o fenômeno, condição essencial para o trabalho.

Palavras-Chave: Adolescentes, Perversão, Família, Ato Anti-Social, Transtorno de Conduta.

PSYCHOANALYSIS AND ANTI-SOCIAL ACT. (Considerations about the treatment of adolescents in conflict with the law).

Abstract: This article searches the psychoanalytical comprehension of adolescents anti social acts from the experience of psychoanalytical hearing in treatment of adolescents over social education procedure of freedom privation in Rondônia State. There is a reflection about conduct disorder psychopath and perversion related to these adolescents, when it comes to importance of an extense hearing about the phenomenon, essential condition to this specific work.

Key-Words: Adolescents, perversion, family, anti-social act, conduct disorder.

Atualmente é cada vez mais evidente o quanto as relações humanas e sociais estão marcadas por negações da alteridade e singularidade do outro e pelo desrespeito aos pactos sociais. Juntamente a isto, ou conseqüência disto, temos o aumento da criminalidade e da violência, estimulado inclusive, pela também freqüente transgressão que as próprias instâncias que representam a Lei vem cometendo ( são vários os exemplos na esfera política e nos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário).

Nossa experiência ao longo de sete anos (2000-2007) no atendimento a adolescentes envolvidos em atos infracionais e cumprindo medida socioeducativa de privação de liberdade no Estado de Rondônia, colocou-nos várias questões sociais, institucionais e clínicas.

Sabedores da importância de não separarmos excessivamente cada questão, importou-nos inicialmente a clínica. Neste aspecto, uma das questões que se lançaram diante do trabalho partiu de “reivindicações” por parte de alguns agentes sociais envolvidos no atendimento, que imputavam o diagnóstico de “psicopatas” aos adolescentes, alegando que muitas de suas ações só poderiam estar designando tal personalidade.

O tema foi ainda mais revigorado quando surgiram notícias de que um grupo de neurocientistas brasileiros estaria empenhado em demonstrar que alterações neurológicas e genéticas seriam responsáveis pelo comportamento anti-social de jovens na faixa de 15 a 24 anos. A partir deste cenário, passamos a considerar a relevância de pensarmos a relação entre os atos transgressivos dos adolescentes, a perversão e a psicopatia em uma perspectiva psicanalítica, lembrando que de acordo com a psiquiatria, manifestações anti-sociais em sujeitos menores de 18 anos, são classificadas como “Transtorno de Conduta.”

Uma definição do termo Transtorno de Conduta remete ao conceito presente no CID-10, Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados á Saúde. (1997). Este Manual assim apresenta o conceito denominando-o como Distúrbio de Conduta (F91);

Os transtornos de conduta são caracterizados por padrões persistentes de conduta dissocial, agressiva ou desafiante. Tal comportamento deve comportar grandes violações das expectativas sociais próprias á idade da criança; deve haver mais do que as travessuras infantis ou a rebeldia do adolescente e se trata de um padrão duradouro de comportamento (seis meses ou mais), Quando as características de um transtorno de conduta são sintomáticas de uma outra afecção psiquiátrica, é este último diagnóstico o que deve ser codificado. (CID 10.1997,p.371)

A Vivência junto a adolescentes que cometeram atos infracionais possibilitou sim perceber que muitas das condutas assim denominadas estavam presentes nas situações ali existentes. Não era incomum haver sinais como a excessiva agressividade, tirania, crueldade, roubos, mentiras e desobediências graves por exemplo, senão em todos, em muitos dos jovens.

O CID-10 ainda apresenta variações do Distúrbio de Conduta que incluem; Distúrbios de conduta restritos ao contexto familiar, tipos não socializados e tipos socializados, além do Distúrbio desafiador e de oposição e dos transtornos mistos de conduta e emoções, envolvendo sintomas de depressão e ansiedade.

Ao mesmo tempo, que percebemos a existência de aproximação do conceito com a realidade que vivenciamos em que o uso deste “diagnóstico”, nos ajuda? Será que mesmo em termos clínicos, ao definirmos nosso posicionamento como, favorável a este diagnóstico, não havendo mais nada para pensar, estamos lidando adequadamente com o fenômeno?

A Psicanálise propõe mais do que descrições sintomáticas. E mais além das questões culturais, políticas e sociais, inequivocamente relacionadas á temática apresentada, tem uma escuta da dinâmica psíquica tanto do adolescente quanto de seu contexto familiar. Nesse sentido a classificação psiquiátrica, nos moldes do CID-10, torna-se apenas um complemento do quadro geral.

Uma leitura psicanalítica do anti-social.

Gondar (2005), chama a atenção para a prevalência de um “modus operandis” perverso nos pactos sociais contemporâneos.Assim, se há então, a predominância de uma lógica cultural perversa, com fragilidade e indiferença quanto ao limite, nada mais esperado do que pensar o ato anti-social ( aqui no sentido mesmo de delito, crime e infração) e suas significações para os sujeitos envolvidos , pois como ressalta Gondar ( 2005); “ A teoria psicanalítica ensina que a esfera da cultura e a esfera do indivíduo se encontram indissoluvelmente ligadas na própria constituição do sujeito”( GONDAR,2005,p.17 )

Gondar (2005) alerta ainda, para o interesse da Psicanálise á questão apresentada, e tampouco, coloca a autora, pode tal interesse se reduzir a uma “psicanálise aplicada aos fenômenos culturais”. Na verdade, a denúncia sobre a transposição de limites de poder, isto é, sobre o fato de que ele abarcaria hoje não apenas as relações sociais e culturais quanto á vida íntima dos indivíduos, não parece surpreender os psicanalistas. Haveria uma instância psíquica capaz de transmitir ou impor individualmente os imperativos que prevalecem na ordem cultural; essa instância é o supereu.

O supereu ou superego como é mais conhecido, marca a afirmação da entrada da Lei, via Complexo de Édipo, para cada sujeito ainda em criança. Tal idéia freudiana é a representação maior da leitura psicanalítica, que não é de agora, estabelece uma compreensão sobre os pactos sociais e a subjetividade. De início, nos remetemos a Freud (1914), que escreve que o indivíduo deve realizar uma renúncia e um recalque.Já Shine (1996), especifica que; “A renúncia é o produto da submissão ás proibições enunciadas pelas figuras parentais, instaladas na posição de modelo em que a estrutura edipiana começa seu declínio.”( Shine,1996.p.88)

Uma definição conceitual do supereu ou superego é a que traz Laplanche e Pontalis (1991);

Uma das instâncias da personalidade tal como Freud a descreveu no quadro da sua segunda teoria do aparelho psíquico: o seu papel é assimilável ao de um juiz ou de um censor relativamente ao ego.Freud vê na consciência moral, na auto-observação, na formação de ideais, funções do superego.

Classicamente, o superego é definido como o herdeiro do Complexo de Édipo; constitui-se por interiorização das exigências e das interdições parentais.” ( Laplanche e Pontalis.1991,p.497-8)

Waltenberg (2003) escreve que a partir da Psicanálise sabemos que a organização do aparelho psíquico se faz com a instalação do Princípio de Realidade a partir da coibição da descarga motora (ação) que então se tornou necessária para o desenvolvimento humano proporcionada pelo processo de pensar. Waltenberg cita Freud (1914) que anunciou que o pensar foi dotado de características que tornaram possível ao aparelho mental tolerar uma tensão aumentada de estímulo enquanto o processo de descarga era adiado.

Iremos assim inferir o que caracteriza psiquicamente não apenas o ato infracional de adolescentes, mas também todo ato criminoso; a não sujeição do Princípio de Prazer ao Princípio de Realidade, quando o sujeito não pode renunciar á ação em prol do pensar, em prol do outro. É a problemática da fragilidade das limitações, ou como ressalta Waltenberg (2003), que a criminalidade aparece como o não reconhecimento das delimitações.

Em Psicanálise a perversão se funda no não reconhecimento da atribuição fálica, o desmentido da castração. Dor (1991) ressalta que a atribuição fálica do pai simbólico, representante da lei, nunca será reconhecida, exceto para ser incansavelmente contestada.

Ainda em meio ás “reivindicações”, recorremos a autores como Kernberg (1995) que alertou para a compreensão de que nem todo quadro clinico com presença de atos anti-sociais se enquadra em uma psicopatia. Shine (2000) escreve que a psicopatia é uma condição difícil de se apreender. O mesmo autor ainda especifica o quanto a demanda do sujeito em psicopatia é de outra ordem, pois o psicopata não se pensa como doente. Não é ele que pede ajuda, mas sim aqueles que sofrem as conseqüências de suas ações. Aqui, nos remetemos novamente a Kernberg (1995) que enfatiza que a característica primordial e que também define a gravidade maior do quadro é a incapacidade de se sentir culpa e/ou remorso

Freud (1931) faz uma classificação de tipo caracteriológica definida pela organização da libido daquilo que passamos a conhecer como tipos psicológicos. A partir disto, apresenta alguns dos fatores essenciais que condicionam a criminalidade partindo de três tipos libidinais principais: O tipo erótico, o tipo obsessivo e o tipo narcisista.

O primeiro tem a libido voltada em sua maior parte para a vida amorosa e sua principal necessidade é a experiencia de ser amado. O segundo é dominado pela ação do superego e pela angústia moral e o terceiro, livre das tensões entre o ego e o superego, sem predominância das necessidades eróticas, orientado para a autoconservação, autônomo e pouco intimidável, caracteriza-se por tender a atacar aquilo que está estabelecido tanto quanto pode dar ao desenvolvimento cultural, novas impulsões. Freud apontava-o tanto em relação ao herói quanto ao criminoso. Shine (2000) se pergunta se com os delineamentos freudianos podemos aproximar o psicopata do neurótico ou do psicótico.

O mesmo autor cita Ferraz (1994) que estudou outros psicanalistas que trouxeram contribuições para a compreensão da dinâmica psicopática; Rolla (1973) com o termo organização psicopática da personalidade, Dejours (1988) e o conceito de Tópica do Psicopata, Bergeret (1998) e a denominação Perversão de caráter , além de Winnicott que em sua vasta obra usava o termo tendências anti-sociais.

Ferraz (1996) chama a atenção para Winnicott:

Winnicott (1950), ao encarar de frente o desafio que as tendências anti-sociais representavam para a Psicanálise, alertou para o fato de que os referenciais psicanalíticos necessitavam de algo mais se, se desejasse abordar com sucesso os pacientes com um tipo de conduta delinqüente. Esse algo mais seria a idéia de privação da mãe ou da vida familiar. (Ferraz, 1996, p. 182)

Para Winnicott o ato anti-social tem um apelo de reorganização emocional, retrocedendo aos pontos onde as coisas começaram a dar errado. Em outras palavras, por meio de atos anti-sociais a criança delinqüente procura a mãe suficientemente boa ou mesmo o pai que deveria impor limites.

Em outra obra, Ferraz (2005), pensa uma descrição da perversão em termos sintomatológicos e transferencial, que são eixos distintos porém articulados tanto clínica quanto metapsicológicamente. No eixo sintomatológico, a perversão é concebida como um desvio sexual. Este modelo ainda marca a concepção freudiana em seus primeiros momentos do século XX. Escreve Ferraz ( 2005);

O primeiro dos eixos-mais antigo ou mesmo mais original - está presente na definição freudiana da perversão, cujas linhas básicas já estavam claramente traçadas por Freud, em 1905, nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, e reiteradas na conferencia XXI das Conferencias introdutórias sobre Psicanálise ( O desenvolvimento da libido e as organizações sexuais) em 1917. A perversão é aí concebida, para dizer de modo sintético, como um desvio sexual.(...) A perversão traz assim, a rubrica das “aberrações” e da “inversão” sexuais cuja causa repousaria em uma fixação infantil num estágio pré-genital da organização libidinal, que impede as diversas correntes da sexualidade de se aglutinarem sob o eixo ordenador da genitalidade. Freud assenta sua compreensão sobre uma base comparativa entre neurose e perversão, formulando o conhecido axioma em que a primeira será vista como uma espécie de “negativo” da segunda. (Ferraz, 2005,p.18)

No que se refere ao eixo transferencial, o autor cita o desenrolar teórico tanto de analistas kleinianos quanto de lacanianos, enfatizando que este eixo resulta dos desdobramentos do conceito de “transferência” na escola kleiniana e lacaniana, sendo que na primeira se deve á centralidade assumida pela transferência no trabalho clínico que se torna o objeto mesmo da interpretação. Já na escola lacaniana enfatiza-se o chamado “diagnóstico diferencial”, modalidade de transferência estabelecida pelo paciente e que se liga ao posicionamento psíquico do sujeito diante da castração.

Esse eixo transferencial da descrição da perversão dependendo da escola e do autor que o aborda pode tanto estar mais claramente associado ao eixo sintomatológico como dele se distanciar, chegando, por vezes, a impor-se como parâmetro exclusivo para o diagnóstico. (...) Na escola lacaniana é exatamente a distinção entre esses mecanismos ( além da rejeição, ou Verwerfung) que possibilita e fundamenta a categorização estrutural dos quadros psicopatológicos, consagrando a tríade neurose, psicose e perversão, cuja etiologia passará necessariamente pela resposta do sujeito diante da ameaça de castração. ( Ferraz, 2005, p.21)

O que aparece nos discursos dos adolescentes e familiares.

Se, por um lado, já sabemos que nem todo ato anti-social é psicopatia ( o que pode nos desobrigar de diagnosticar e pensar adolescentes envolvidos em atos infracionais como psicopatas ), por outro lado, a ausência de culpa e remorso estiveram presentes em muitos discursos dos adolescentes atendidos.

Um discurso então comum a vários adolescentes e que apontava para a citada ausência de culpa e remorso, pôde ser percebida, por exemplo, no atendimento a C.16 anos;

- “ Eu fui lá e roubei mesmo.”Deu mole” é isso aí, “tava” a fim e roubei.”

Este pequeno fragmento foi extraído do 2º encontro do atendimento psicológico, o que pode ser entendido como uma fala tipicamente resistente, inerente a qualquer processo de intervenção psíquica obrigatória. Entretanto, por volta do 25º encontro o discurso mantinha-se o mesmo;

- “Não ligo “pro” que eu fiz não!”Tava” a fim e fiz.Quando sair vou fazer de novo.”

Situações como a descrita acima, levam os profissionais psi a perceber claramente as limitações do atendimento psicológico para esta clientela, não exclusivamente por aspectos apenas do atendimento em si, mas também e talvez principalmente por questões que ultrapassam a atuação do psicólogo e se referem às dinâmicas institucionais presentes neste tipo de trabalho. Em outras palavras; podemos inferir que sua fala é fruto também de se encontrar privado de liberdade?

Paralelamente, houve adolescentes que manifestavam sofrimento após alguns encontros, porém ficava evidente que não estava associado á culpa ou remorso e sim, á angústia de ficar privado de liberdade, como na fala de M. 17 anos;

- “Não agüento ficar aqui...Bate neurose!...ficar um tempão trancado.”

A angústia de M estava ligada á punição de ficar trancado, o que por si só já se constitui um grande problema para o atendimento socioeducativo que prevê uma série de atividades que dificilmente aconteciam como deveria. Mas, a presença desta angústia não caracterizava o remorso, pois não havia em M. alusão aos episódios de transgressão.

Em alguns atendimentos foi percebido que, mesmo adolescentes que falavam em arrependimento não necessariamente iam além de um discurso racionalizado. Muitos, após a retirada da medida de privação de liberdade voltavam a delinqüir. Em vários casos de escuta a adolescentes que “iam e voltavam” da internação, ficou evidente que procuravam falar aquilo que, em sua fantasia, “seria bom de colocar no relatório”.

Este aspecto do atendimento traz a questão da falta de demanda do adolescente envolvido em atos infracionais para o atendimento psicológico. Uma das principais barreiras que o psicólogo enfrenta neste trabalho, marca então o adolescente como aquele não tem nada para falar de si, sendo a ida ao psicólogo apenas uma forma de sair do alojamento e não, a priori, um momento que pode suscitar reflexões, aqui, uma provável semelhança com as características do psicopata? Ou apenas reações esperadas diante da angústia de instituições que não fazem o que deviam por lei fazer e não oferecem as condições, que vão muito além do trabalho psicológico, para o desenvolvimento do adolescente?

Acreditamos que apesar desta barreira muito forte em muitos dos adolescentes, houve casos em que se construiu um vínculo que permitiu a construção de uma demanda para o atendimento. Ressaltamos porém que não foi algo realizado em curtíssimo tempo e que talvez pudesse ser mais freqüente se nos fosse dado mais possibilidade de uma escuta adequada por meio de mais encontros com o adolescente e que por exemplo, não fosse tão “urgente” o psicólogo estar obrigado a emissão de relatórios para a Justiça. Talvez possamos pensar, como Silva (1995); “(...), o Estado cria seus próprios marginais, quando não se tem uma política efetiva de atendimento, colocando, amontoando vários adolescentes que cometem infrações num quadrilátero...”( Silva,2005,p.03).

Por outro lado, acreditamos que há uma supervalorização do trabalho do psicólogo, entretanto, ás avessas quando se trata de adolescentes envolvidos em atos infracionais. Não é incomum que falte toda uma política pública de assistência ao fenômeno, mas atualmente não faltam os psicólogos para realizar os atendimentos aos adolescentes, e claro, emitir seus relatórios á Justiça.

A mensagem que parece ficar tem via dupla: o problema seria meramente psicológico e também, no máximo, educativo ( daí a importância de haverem escolas nas Unidades?). Não haveria razões para se pensar em termos sociais como agente causador. E, outro ponto, a colocação do trabalho do psicólogo em uma posição de “controle social”, servindo a todos e menos ao adolescente. Aspectos para pensar.

Aqui não nos resta dúvida de que a desobrigação quanto a diagnosticar os adolescentes como psicopatas não nos deixa em situação muito menos desconfortável pois a investigação clínica psicodinâmica não poderá isoladamente resolver a compreensão dos delitos. Deveríamos saber o quanto aspectos sociais são determinantes para a construção destes fenômenos (falta de políticas públicas adequadas, falência das Escolas e da Segurança Pública, desemprego, etc.) e que tal compreensão geral é essencial para a prática profissional ainda mais quando o trabalho exige uma abordagem multiprofissional e interdisciplinar. Entretanto, nosso objetivo aqui são as reflexões de ordem psíquica que sem tornam mais fortes quando nos deparamos com adolescentes vindos de famílias de classe média praticando infrações, o que derruba qualquer teoria meramente social.

O atendimento aos adolescentes estendia-se também a escuta de seus familiares. O contato com os familiares mostrou assustadora fragilidade quanto á representação da função paterna e dos vínculos, recheados de indiferença e de não reconhecimento. Situações com agressividade quanto á figura do pai mostravam muito mais a queixa quanto á ausência do que a indiferença, configurando nestes casos, uma possibilidade até maior de intervenção, que se mostrava muito difícil com adolescentes que simplesmente ignoravam a função de limite ou mesmo a figura do pai.

No tocante ás famílias, pensamos sempre do ponto de vista psicanalítico;

O que vai interessar ao psicanalista de família são as relações do grupo familiar, ou seja, o intercâmbio entre as pessoas, as formas como elas se relacionam.Aqui vale assinalar algo bastante interessante: esse relacionamento começa antes do surgimento da própria criança.(...)O terapeuta se debruça basicamente sobre a dinâmica familiar.( Meyer, 1998,p.32-33)

No trabalho com os adolescentes, configurou-se fundamental a leitura do funcionamento de suas famílias na busca de uma compreensão que nos permitisse pensar uma série de manifestações do próprio adolescente. Meyer (1998) chama a atenção para a importância da dinâmica;

A dinâmica familiar nada mais é que um conjunto de trocas de influências entre seus membros.( ...) é o foco de atenção do terapeuta de família: as relações objetais familiares.

( ...) Um sujeito é composto de um conjunto de identificações que se somam, sobrepõem e o acompanham, exprimindo os diferentes anseios de sua vida e a sua maneira e compreender e aprender o mundo. ( Meyer, 1998, p.33)

As falas dos familiares dos adolescentes, principalmente a mãe e em uma proporção menor, o pai, revelavam muito do que o adolescente apresentava, ou seja, suas respostas diante de um lugar construído nesta dinâmica da família. Como esta fala de uma mãe;

- “Esse menino sempre foi danado.Desde pequenininho que pegava coisas dos outros, mexia...Eu dava palmada, mas depois de um tempo fazia de novo.”

Uma avó em entrevista, verbalizou como o neto entrou no mundo da criminalidade;

- “ Ficava na rua o dia todo...não obedecia não. Só eu cuidando. A mãe, minha filha, envolvida com drogas, o pai sumiu...”

Tais falas demonstram as dificuldades típicas do contexto que envolve estes adolescentes; fortes dificuldades em impor limites ás crianças aliadas á existência cada vez mais comum, de pais( ou avó, no caso) que, por várias razões ,não exercem suas funções de educar, o que traz sempre a possibilidades de violência, além de serem ilustrações também das novas configurações familiares no mundo atual onde a figura da família triangular com presença adequada de pai e mãe, sempre foi quase que uma inexistência.

Outras falas muito freqüentes entre familiares eram de que o adolescente era mera vítima do que estava acontecendo, ou do sistema, ou da polícia ou de outros criminosos, que não sabiam como o adolescente se envolvera com drogas e criminalidade. Havia também comportamentos agressivos e desafiadores de alguns pais, mães e até namoradas dos adolescentes, que assumiam uma postura unicamente fiscalizadora da Instituição e não colaborava para cultivar reflexões nos jovens, isso aliado muitas vezes a condutas criminosas dos próprios familiares.

Podemos dizer mesmo, que o trabalho com a família tornou-se tão ou mais importante que o atendimento isolado aos adolescentes. Não foram poucas as situações em que escutar e orientar os familiares era algo muito difícil de ser feito, principalmente quando nos deparávamos com pais e mães envolvidos também com a criminalidade e/ou com fortes limitações afetivas na relação com os filhos. Havia ainda pais agressivos, que se recusavam a admitir as condutas transgressoras dos filhos e que acabam por não contribuir com o trabalho na medida em que repetiam para seus filhos que estes não haviam feito nada e que tudo aquilo era um absurdo, quando estava claro para nós que se tratava de adolescentes com fortes condutas anti-sociais.Um reflexo dos pais? Não nos restam dúvidas.

Neste ponto devemos ressaltar a fragilidade de uma Lei paterna saudável na dinâmica destes adolescentes. Ou aparecia como o citado, um pai ou mãe com conduta perversa, ou o mais comum, a falta da entrada da lei paterna como um fator crucial que impulsiona o adolescente a cometer uma infração, denúncia de sua impossibilidade de possuir uma referência que lhe permita reconhecer-se e abrir mão dos fortes desejos pulsionais de violência.

Goldenberg (1998) enfatiza que, na ausência do pai simbólico, o Juiz passa a exercer a função paterna no inconsciente dos adolescentes envolvidos com infrações.

Quando a criança comete uma infração está denunciando que seu pai simbólico está ausente e que para sobreviver precisa de alguém que possa representá-lo, mas que seja muito presente e forte, ainda mais que chega tardiamente. O juiz representa na sociedade uma instituição poderosa (...), é imprescindível que elas percebam que há pessoas mais fortes do que elas, que possam limitar os seus impulsos. ( Goldenberg, 1998,p.113-114)

O Juiz é então, o pai que faltou, aquele que coloca o limite no filho, torna-se o superego, que além de impor-lhe limites, poderá ajudá-lo na recuperação de sua vida afetiva e social. Goldenberg cita ainda que o adolescente transgride contra a sociedade a fim de estabelecer o controle proveniente do externo através das medidas de execução legais.( Goldenberg,1998)

Fica evidente então, o que Winnicott (1987), afirma a partir de seus estudos sobre a delinqüência;

A criança cujo lar não lhe ofereceu um sentimento de segurança, busca fora de casa as quatro paredes; (...)Procura uma estabilidade externa sem a qual poderá enlouquecer.

A criança anti-social está simplesmente olhando um pouco mais longe, recorrendo á sociedade em vez de recorrer a família ou á escola para lhe fornecer a estabilidade de que necessita...( Winnicott, 1987,p 43)

Algumas conclusões.

Os adolescentes envolvidos em atos infracionais podem ser plenamente pensados dentro de uma lógica perversa que marca a subjetividade atual. Suas condutas estão cada vez mais atingidas pelo movimento fatídico que não reconhece limites, não reconhece sua insuficiência e muito menos reconhece o outro.

O trabalho também mostrou que muitos adolescentes foram ao ato por questões não contempladas neste artigo ( questões de ordem social e cultural), o que acabava por se constituir em uma espécie de prognóstico mais positivo do ponto de vista psicopatológico, mas não necessariamente menos complexo de ser trabalhado. Daí a urgência de se avaliar não apenas aspectos psíquicos, mas sim o contexto geral de cada adolescente, separando cada história, cada sujeito, o que dentro dos muros institucionais raramente acontece, cabendo somente ao psicólogo este desafio.

Esta consideração especifica que as questões de ordem institucional/organizacional foram ainda maiores e mais difíceis do que qualquer outra questão de ordem clínica e sem dúvida, mereceriam um artigo específico, pois denunciam outros lados da história como a ausência de políticas públicas e o descaso das autoridades do executivo para lidar, como manda a lei, com esta clientela. Não está passou da hora de termos políticas públicas eficientes e não apenas contratar psicólogos como se a questão se resumisse a isto?

Por fim, que não se pense que este artigo defende alguma ideologia como a redução da maioridade penal, por exemplo. O que se busca aqui é apenas o livre exercício da reflexão psicanalítica, que vê no ato anti-social (aqui, de adolescentes), apenas uma parte do grande mosaico perverso que caracteriza a cultura contemporânea.

* O autor é Psicólogo (CRP01/7798) dos Juizados Especiais Criminais do Estado de Rondônia. Email: zenoneto@tjro.jus.br

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